A morte encefálica, também conhecida como morte cerebral, é um tópico de grande confusão, devido aos critérios que devem ser seguidos estritamente.
E ainda, por causa da grande responsabilidade que é de determinar este estado, que por definição é definitivo, irreversível, e não permite ambiguidades.
Esse diagnóstico tem grandes impactos na família do paciente, mas ultrapassa esta esfera, e pode impactar outros pacientes que estão precisando de transplantes de órgãos.Isso porque, pacientes em morte encefálica são elegíveis para doação de órgãos.
Ao longo deste texto vamos tentar descomplicar um pouco esse tópico e focar em como realizar esse diagnóstico.
O que é uma morte encefálica?
É a morte determinada por critérios neurológicos. Ela ocorre quando há ausência de função do cérebro e tronco encefálico, de caráter irreversível. É um estado legalmente reconhecido como definidor de morte pela Constituição Brasileira, desde 1992.
E, de fato, a morte neurológica se seguirá da falência dos demais sistemas orgânicos, até culminar com a parada cardiorrespiratória, fazendo parte de um fluxo que não é possível de ser revertido e inexorável.
O sistema nervoso central cumpre um papel essencial à integração e coordenação do funcionamento dos demais órgãos e sistemas, desse modo sua falência irreversível é incompatível com a vida.
Qual a diferença entre morte encefálica e coma?
A morte encefálica ocorre quando se torna impossível reverter a perda das funções cerebrais e do tronco encefálico.
Já o coma é um estado de irresponsividade, em que o paciente não consegue interagir com o meio, e não responde a estímulos vigorosos.
Ele compõe o espectro de estados de redução do nível de consciência, que inclui a vigília, a obnubilação e o estupor, por exemplo.
Diferente da morte cerebral, o coma tem a possibilidade de reversão e tem preservação das funções cerebrais e do tronco encefálico (como por exemplo, reflexos de tronco, como o pupilar, vestíbulo-cefálico e corneano responsivos).
Quais as principais causas da morte encefálica?
Este diagnóstico é a causa de cerca de 2% das mortes por ano, nas estatísticas norte-americanas.
Ela pode ser provocada por diversas doenças, mas que precisam necessariamente acometer o tronco encefálico, seja de forma direta (como encefalopatia hipóxico-isquêmica), seja de forma indireta (como nas síndrome de herniação cerebral por aumento da pressão intracraniana).
As principais causas são:
- Traumatismo Cranioencefálico
- AVC hemorrágico
- AVC isquêmico
- Lesão hipóxico-isquêmica pós parada cardiorrespiratória
Quais são os critérios de morte encefálica no Brasil?
A morte cerebral deve ser avaliada em todos os indivíduos suspeitos. Situações que indicam suspeita são: coma não reativo e ausência de reflexos de tronco.
A família deve ser avisada desta possibilidade desde o início da desconfiança e o Centro Estadual de Transplantes deve ser notificado.
Para determinar este diagnóstico, precisamos de alguns pré-requisitos, sendo eles:
- Estabelecer lesão encefálica de causa irreversível, conhecida e capaz de causar morte cerebral;
- Ausência de fatores tratáveis que possam confundir o diagnóstico, como a intoxicação exógena ou efeito de psicotrópicos;
- Tratamento e observação em hospital por ao menos 6 horas. Nos casos de lesão hipóxico-isquêmica, deve-se esperar 24 horas;
- Temperatura >35 ºC e Pressão Arterial sistólica (PAS) > 100 mmHg ou Pressão arterial média (PAM) > 65 mmHg (em maiores de 16 anos).
Após isso, deve ser confirmada a morte neurológica da seguinte forma:
- 2 exames clínicos realizados por dois médicos diferentes (e não participantes das equipes de captação de órgãos e transplante), com intervalo de ao menos 1 hora
- Realização do Teste de Apneia
- Confirmação com Exame Complementar
Após isso, o diagnóstico pode ser confirmado, com assinatura da declaração de óbito, comunicação aos familiares e avaliação da possibilidade de doação de órgãos.
Segundo a legislação brasileira atual, os profissionais que podem realizar os exames clínicos são: neurologistas, emergencistas, neurocirurgiões, intensivistas e intensivistas pediátricos. Mas na ausência de um desses profissionais, um médico capacitado pode realizar esses exames.
A determinação de capacitação pelo CFM é: 1 ano de experiência no atendimento de pacientes em coma, que tenham acompanhado ao menos 10 desses diagnósticos, ou que realizaram o curso de diagnóstico de morte cerebral.
Como é o protocolo de morte encefálica?
1. Estabelecimento de lesão encefálica com causa conhecida e irreversível
Deve-se estabelecer o estado de coma, com irresponsividade a qualquer estimulação e ausência de respostas motoras, que não decorrentes de reflexos espinhais.
Após isso, deve-se estabelecer a causa da lesão no Sistema Nervoso Central, seja por parâmetros clínicos, seja por exames de neuroimagem (por exemplo, evidência de hemorragia subaracnóidea extensa na Tomografia Computadorizada de Crânio).
2. Exclusão de causas tratáveis
Causas que podem simular a morte encefálica são diversas, mas entre elas estão as seguintes:
- Síndrome do Encarceramento (Locked-in): causada pelo AVC isquêmico da ponte (pela oclusão da artéria basilar). Ocorre lesão de todo o trato piramidal, que se concentra em uma região pequena na ponte, de modo que o paciente perde toda a capacidade de se mover e de reagir a estímulos. Contudo, mantém as aferências sensoriais, o movimento de piscamento, e o movimento vertical do olhar;
- Hipotermia: principalmente temperaturas menores do que 32°C;
- Paralisia muscular: tanto por doenças neuromusculares graves e avançadas, como uma Síndrome de Guillain-Barré grave, como por medicações bloqueadoras neuromusculares (rocurônio, cisatracúrio, succinilcolina);
- Intoxicação por drogas: como no coma induzido por barbitúricos, mas também benzodiazepínicos, neurolépticos, e opióides.
3. Tratamento e observação em ambiente hospitalar por ao menos 6 horas
Exceções a esta regra são as encefalopatias de etiologia hipóxico-isquêmica, que demandam observação por ao menos por 24 horas.
Além disso, em crianças, a morte cerebral só pode ser diagnosticada após 7 dias de vida:
- Crianças menores de dois meses precisam de um tempo de observação de 24 horas; e
- Crianças entre 2 meses e 2 anos incompletos precisam de um tempo de 12 horas.
4. Temperatura >35°C e PAS >100 mmHg ou PAM > 65 mmHg em maiores de 16 anos
A pressão arterial mínima também varia de acordo com a faixa etária:
- >16 anos: PAS > 100 mmHg ou PAM > 65 mmHg
- 7-16 anos: PAS >90 mmHg ou PAM > 65 mmHg
- 2-7anos: PAS >85 mmHg ou PAM> 62 mmHg
- 5 meses-2 anos: PAS > 80 mmHg ou PAM > 60 mmHg
- Até 5 meses: PAS > 60 mmHg ou PAM > 46mmHg
5. Exame clínico
Passado o tempo de espera, pode-se proceder ao exame clínico da morte cerebral. Ele deve ser realizado por dois médicos diferentes, de equipes independentes não relacionadas a captação e transplante de órgãos, e com um intervalo mínimo de 1 hora.
O principal objetivo do exame é obter resposta dos reflexos do tronco encefálico, que são formas de demonstrar a integridade dessa estrutura que mantém funções vitais.
Os reflexos observados são os seguintes: o reflexo fotomotor, córneo-palpebral, reflexo de tosse e os reflexos vestíbulo-oculares.
Reflexo Fotomotor
Busca observar a integridade das vias mesencefálicas do controle de abertura pupilar. Para o reflexo ser considerado ausente, as pupilas devem estar mediofixas e não reagentes à luz.
Reflexo Córneo-palpebral
Este reflexo é provocado ao estimular o limbo da córnea (o limite entre a córnea e a conjuntiva) levemente com um pedaço de algodão fino.
De forma fisiológica, isso provocaria um estímulo que iria percorrer o nervo trigêmeo (V par craniano) até o tronco encefálico, onde haveria integração do estímulo e envio da resposta através do nervo facial (VII par craniano) que provocaria um piscamento reflexo.
Para ser considerado ausente, a estimulação corneana não deve provocar piscamento ou nenhuma outra resposta motora reflexa.
Reflexos Vestíbulo-oculares
Podem ser evocados de duas formas, através da Manobra dos Olhos de Boneca (Reflexo Óculo-Cefálico) ou através da Prova Calórica (Reflexo Vestíbulo-Ocular).
Ambos os reflexos testam a via de integração entre estímulos vestibulares (pelo nervo vestibulococlear – VIII par craniano) e o movimento ocular extrínseco.
Este último movimento se dá pelos nervos oculomotor, troclear e abducente e o fascículo longitudinal medial, uma via que integra os núcleos desses nervos e permite o olhar conjugado dos dois olhos.
Na Manobra dos Olhos de Boneca, a cabeça do paciente é virada para os dois lados, e se espera que os olhos mantenham o foco na frente, compensando o movimento da cabeça.
Na lesão de tronco e na morte encefálica, isso não acontece, e os olhos seguem o movimento da cabeça, sem ter um movimento compensatório (assim como acontece quando viramos a cabeça de uma boneca de um lado para o outro).
Na Prova Calórica, uma seringa injeta água fria em um dos ouvidos. Isso provoca um estímulo térmico, e em pessoas despertas, ocorre um nistagmo ocular.
Em pacientes comatosos, os dois olhos se desviam em direção ao ouvido estimulado. Mas na morte encefálica, não há nenhum movimento ocular, e os olhos permanecem parados.
Reflexo da Tosse
Este reflexo busca analisar pares cranianos mais baixos, como o nervo glossofaríngeo (IX) e o nervo vago (X) e a integridade do bulbo.
Ele é evocado estimulando a carina da traquéia com um cateter de sucção, passando por dentro do tubo orotraqueal ou traqueal.
Em indivíduos saudáveis, isso iria evocar um reflexo de tosse, mediado pelo nervo vago, mas na morte encefálica, esse reflexo não ocorre.
Para ser considerado morte neurológica, todos esses reflexos precisam estar ausentes, e essa informação deve ser confirmada em um segundo exame clínico realizado ao menos uma hora depois por outro profissional.
6. Teste de Apneia
O teste de Apneia almeja testar a sensibilidade do centro respiratório no bulbo a reagir ao aumento da concentração de CO2.
Antigamente esse procedimento poderia provocar lesões isquêmicas, mas hoje em dia ele foi revisado e é feito de forma mais cuidadosa.
Inclusive, antes do teste, os pacientes devem receber oxigênio a 100% por 10 minutos. Vale salientar que, só pode ser realizado em indivíduos com Pressão Sistólica >100 mmHg e PaCO2 entre 35 e 45 mmHg. Além disso, deve seguir uma ordem estrita:
- Obtenção de gasometria arterial basal (idealmente com PaO2>200 mmHg e PaCO2 entre 35-45 mmHg)
- Oxigenação com O2 a 100% por 10 minutos
- Desconectar paciente do ventilador
- Inserir um cateter de O2 pelo tubo traqueal com fluxo de 6L/min
- Observar paciente por 8-10 min ou até PaCO2>55 mmHg para detectar qualquer movimento respiratório
- Encerrar exame coletando uma nova gasometria, que deve evidenciar PaCO2>55 mmHg ou aumento de 20mmHg do basal
Para mais, o teste deve ser interrompido imediatamente no caso de evidências de movimentos respiratórios, arritmias, hipotensão ou hipóxia com SatO2 <85%.
Nos casos de interrupção por causa diferente da presença de movimentos respiratórios, o teste deve ser repetido posteriormente.
7. Exames Complementares
Segundo a legislação brasileira, basta um exame complementar para corroborar o diagnóstico de morte encefálica. Os exames que podem ser utilizados são os seguintes:
- Eletroencefalograma: Demonstração de ausência completa de atividade elétrica, inclusive a estímulos auditivos, visuais e dolorosos vigorosos
- SPECT: Demonstração de ausência de perfusão cerebral
- Doppler Transcraniano: Fluxo arterial reverberante, ou pequenos picos arteriais na diástole precoce
- Angiografia: Ausência de fluxo nas artérias intracranianas
- AngioTC: Ausência de fluxo distal nas artérias cerebrais médias
Vale lembrar que em nenhuma situação o exame complementar substitui os exames clínicos, devendo apenas ser utilizado para corroborar seus achados.
Em resumo, para determinar o diagnóstico é necessário a determinação dos pré-requisitos que discutimos acima e: 2 exames clínicos compatíveis + Teste de Apneia + 1 exame complementar.
Perguntas Frequentes (Guia Rápido)
Quantos profissionais são necessários para confirmação da morte encefálica?
A princípio, bastam dois médicos, de preferência neurologistas, neurocirurgiões, intensivistas, intensivistas pediátricos e emergencistas.
Mas na indisponibilidade de um desses profissionais, um médico devidamente capacitado pode realizar o diagnóstico.
Quais os cuidados de enfermagem para o paciente em morte encefálica?
Os cuidados da enfermagem são essenciais após o diagnóstico, pois permitem a manutenção dos órgãos para possível doação.
Desse modo é essencial o monitoramento e o cuidado da temperatura corporal, distúrbios hidro-eletrolíticos e estabilidade hemodinâmica.
Quanto tempo uma pessoa sobrevive com morte cerebral?
Varia muito dependendo do contexto do paciente. O processo de morte não acomete todos os sistemas ao mesmo tempo.
Sendo assim, mesmo após uma parada cardiorrespiratória, é sabido que alguns tecidos se mantêm funcionantes por algum tempo, por exemplo.
Na morte neurológica o primeiro sistema acometido é o sistema nervoso, que é essencial à integração das informações e controle da vida, de modo que inexoravelmente os outros tecidos também vão morrer, até a culminação com a parada cardiorrespiratória.
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Conclusão
A determinação de morte encefálica é um aspecto importante para a família do paciente, mas também para futuros receptores de órgãos.
É uma situação sensível e deve ser tratada adequadamente, seguindo o protocolo de forma a chegar a um diagnóstico definitivo.
Vale lembrar, que a família deve ser notificada desde a suspeita, e deve-se conversar e explicar o máximo possível sobre esta situação complicada, que muitas vezes é de difícil entendimento para a população leiga.
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