De acordo com dados da OMS, cerca de 9 pessoas morrem no mundo a cada minuto devido a um politrauma – seja ele por acidente automobilístico, queda de médias ou grandes alturas, violência com armas de fogo, incêndio, entre outros.
Se contarmos apenas os acidentes automobilísticos, temos cerca de 1 milhão de mortes anualmente ao redor do mundo e 50 milhões de feridos significativamente – os acidentes automobilísticos são a principal causa mundial de morte devido a trauma.
Graças a esses números assustadores, nas últimas décadas a comunidade médica decidiu sistematizar e triar pacientes politraumatizados com o emprego do ATLS (advanced trauma life support) e um de seus maiores pilares, o ABCDE do trauma.
O que é o ABCDE do trauma?
O ABCDE do trauma é uma abordagem sistematizada, a triagem que deve ser empregada no atendimento a pacientes durante urgências e emergências no trauma.
Cada letra do acrônimo ABCDE corresponde a uma avaliação a ser realizada nesse atendimento, que deverá seguir uma ordem específica. Falaremos mais sobre o que cada uma delas significa ao longo deste texto.
Como surgiu o protocolo ABCDE do trauma?
O protocolo ABCDE do trauma foi criado dentro de um curso chamado ATLS, com a intenção de priorizar maior agilidade, eficiência e padronização no atendimento aos pacientes politraumatizados, uma vez que as primeiras horas deste atendimento são críticas e podem fazer a diferença entre a vida e a morte.
Em 1976, o ortopedista americano James Styner e sua família estiveram tragicamente envolvidos em um acidente de avião no estado de Nebraska, EUA.
Segundo ele, o atendimento médico que se seguiu foi fraco, desorganizado e despreparado. Este acontecimento levou à ideia do que seria o ATLS.
O Dr. Styner uniu forças com seu colega de profissão, o também ortopedista Paul Collicott, e, juntos, criaram e deram início ao curso que prepararia médicos ao redor de todo o mundo para o atendimento rápido, eficiente e organizado aos pacientes vítimas de politrauma: o ATLS.
Um dos pilares do ATLS é o ABCDE do trauma, protocolo que dá início ao atendimento. Desde então, a certificação no curso tem sido empregada em vários países do mundo, o Brasil sendo um deles.
O ATLS foi responsável por melhorias radicais nos resultados do tratamento do politrauma.
ABCDE – Avaliação Inicial
É importante ressaltar que a ordem dessas avaliações importa tanto quanto as avaliações em si, pois ela prioriza situações que podem levar ao óbito primeiro.
Portanto, o médico deverá começar pelo A e não seguir para a próxima letra enquanto o tratamento – se necessário – não for realizado.
A: Airway – Vias aéreas e restrição da coluna cervical
Na avaliação inicial de um paciente traumatizado, primeiro inspecione as vias aéreas para verificar permeabilidade.
Essa avaliação rápida na busca por sinais de obstrução inclui a inspeção de corpos estranhos, identificação de fraturas faciais, mandibulares e/ou traqueais e laríngeas (ou outras lesões que possam resultar na impermeabilidade das vias aéreas).
Se necessário, empregue a aspiração de secreções e/ou sangue que também podem estar causando obstrução.
Inicie medidas para estabelecer uma via aérea permanente – seja ela via intubação orotraqueal ou cricotireoidostomia – caso necessário, ao mesmo tempo em que restringe o movimento da coluna cervical.
Técnica de restrição de movimento da coluna cervical. Quando o colar cervical é removido, um membro da equipe deve estabilizar manualmente a cabeça e o pescoço do paciente. Fonte: ATLS 2018
Se o paciente consegue se comunicar verbalmente sem maiores problemas, é provável que as vias aéreas não estejam em perigo imediato. Porém, se há alteração no nível de consciência, a avaliação deverá ser repetida.
Um Glasgow menor que 8 indica a necessidade do estabelecimento de uma via aérea permanente.
B: Breathing – Respiração e ventilação
A manutenção de vias aéreas pérvias por si só não assegura uma ventilação adequada. A ventilação requer funcionamento adequado dos pulmões, pleuras, das paredes torácicas e do diafragma, portanto deve-se avaliar cada um destes.
Para inspecionar corretamente a distensão venosa jugular, a posição da traqueia e a expansão da parede torácica, exponha o pescoço e o tórax do paciente. Realize a ausculta para se certificar do fluxo aéreo pulmonar.
A inspeção visual e a palpação podem detectar lesões na parede torácica que podem comprometer a ventilação. A percussão do tórax também pode auxiliar na identificação de anormalidades (mas durante uma ressuscitação ruidosa pode ser imprecisa).
Lesões que prejudicam significativamente a ventilação em curto prazo incluem pneumotórax hipertensivo, hemotórax maciço, pneumotórax aberto, lesões traqueais e brônquicas. Estas devem ser identificadas e tratadas de imediato para garantir uma ventilação eficaz.
Todo paciente de trauma deve receber oxigênio suplementar. Se não houver intubação, ele deve ser fornecido via BVM (bolsa válvula máscara – o conhecido ambu) para oxigenação ideal. Use um oxímetro de pulso para monitorar a saturação.
C: Circulation – Circulação e controle hemorrágico
A hemorragia é a causa predominante de mortes evitáveis no trauma. Rápida identificação e controle hemorrágico são passos cruciais na prevenção dessas mortes. Os elementos de observação clínica mais importantes aqui são:
Nível de consciência
Quando o volume de sangue circulante é reduzido, a perfusão cerebral pode ser prejudicada, resultando em nível de consciência alterado.
Perfusão cutânea
Um paciente com volume circulante prejudicado pode apresentar extremidades pálidas e demora no retorno da circulação capilar (tempo de reperfusão capilar aumentado ou “sinal da unha branca”).
Pulso
Um pulso rápido e filiforme tipicamente é um sinal de hipovolemia. Avalie um pulso central (femoral ou carotídeo) bilateralmente em sua qualidade, tempo e regularidade. Ausência de pulsos centrais que não podem ser atribuídos a fatores locais significam necessidade de ação ressuscitativa imediata.
Se há sinais de hemorragia, identifique se ela é interna ou externa. Caso seja externa, deve ser estancada imediatamente com pressão manual ou, dependendo do local, torniquete (que vem com o risco de isquemia do membro caso seja mantido por muito tempo – avaliar se há risco de vida caso não realizado).
As principais áreas de hemorragia interna são tórax, abdome, retroperitônio, pelve e ossos longos.
A fonte de sangramento é geralmente identificada por exame físico e imagem (por exemplo, Rx de tórax, Rx de pélvis, avaliação focada com ultrassonografia para trauma – o FAST – ou lavagem peritoneal diagnóstica).
O manejo pode incluir drenagem torácica e aplicação de um dispositivo estabilizador pélvico e/ou talas nas extremidades. O manejo definitivo pode exigir tratamento cirúrgico ou radiológico intervencionista, estabilização pélvica e de ossos longos. Inicie precocemente a avaliação cirúrgica ou procedimentos de transferência desses pacientes.
D: Disability – Disfunção neurológica
Uma avaliação neurológica rápida estabelece o nível de consciência do paciente e a reação pupilar, identifica a presença de sinais lateralizantes e determina o nível de lesão da medula espinhal (se presente).
A Escala de Glasgow é um método rápido, simples e objetivo de determinar o nível de consciência.
A diminuição no nível de consciência de um paciente pode indicar diminuição da oxigenação e/ou perfusão cerebral ou lesão cerebral direta.
Um nível de consciência alterado indica a necessidade de reavaliação imediata do estado de oxigenação, ventilação e perfusão do paciente.
Hipoglicemia, álcool, narcóticos e outras drogas também podem influenciar nessa alteração.
Até que se prove o contrário, sempre presuma que mudanças no nível de consciência são resultado de lesão do sistema nervoso central.
Lembre-se de que intoxicações por drogas ou álcool podem acompanhar uma lesão cerebral traumática.
Os pacientes com evidência de lesão cerebral devem ser tratados em um estabelecimento que tenha equipe e recursos para antecipar e gerenciar suas necessidades.
Quando estes recursos não estão disponíveis, os procedimentos para transferência devem começar assim que a condição for reconhecida.
Da mesma forma, peça consulta a um neurologista ou neurocirurgião assim que qualquer lesão cerebral for identificada.
E: Exposure – Exposição e controle da temperatura
Durante o exame primário, remova completamente as roupas do paciente para facilitar uma avaliação minuciosa.
Após a avaliação, cubra o paciente com cobertores quentes ou utilize um aquecedor externo para evitar que ele desenvolva hipotermia.
Aqueça os fluidos intravenosos antes de infundi-los e mantenha o ambiente aquecido. A hipotermia pode estar presente quando o paciente chega ou pode se desenvolver rapidamente no atendimento, caso ele esteja descoberto e seja submetido à administração rápida de fluidos em temperatura ambiente ou sangue refrigerado.
Como a hipotermia é uma complicação potencialmente letal em pacientes de trauma, implemente medidas agressivas para evitar a perda de calor corporal.
A temperatura corporal do paciente é uma prioridade mais alta do que o conforto dos profissionais de saúde, e a temperatura da área de ressuscitação deve ser aumentada para minimizar a perda de calor.
O uso de um aquecedor de fluidos de alto fluxo para elevar a temperatura dos cristalóides a 39°C é recomendado.
Se não estiver disponível, um microondas pode ser usado (para cristalóides, mas nunca para hemoderivados).
ABCDE – Avaliação Secundária
A avaliação secundária não deve ter início até que o ABCDE do trauma primário esteja concluído, os esforços de ressuscitação estejam em andamento e a melhora dos sinais vitais do paciente tenha sido demonstrada.
Quando há disponibilidade de equipe, parte da pesquisa secundária pode ser conduzida enquanto a primária é realizada – desde que não interfira com esta.
A avaliação secundária examina da cabeça aos pés o paciente vítima de trauma – ou seja, faz uma história completa que inclui exame físico e reavaliação periódica de todos os sinais vitais.
Anamnese
O AMPLE [alergias, medicações, doenças prévias, última refeição (“last meal”), eventos relacionados ao trauma] é um bom mnemônico para o que se deve perguntar na anamnese direcionada ao trauma.
Exame Físico
Durante a avaliação secundária, o exame físico segue a sequência: cabeça; estruturas bucomaxilofaciais; coluna cervical e pescoço; tórax, abdome e pelve; períneo, reto e vagina; sistema musculoesquelético e sistema neurológico. Todos esses sistemas devem ser avaliados de forma minuciosa e direcionada ao trauma.
Assista nosso vídeo sobre trauma com o professor Amyr Kelner e veja como esse tópico cai nas provas da SURCE:
Quais as vantagens da implementação do protocolo ABCDE do trauma?
As vantagens do protocolo ABCDE do trauma podem ser resumidas em:
- Sistematização do atendimento em todos os locais;
- Esforços coordenados e treinados;
- Rapidez e eficácia;
- Hierarquização de prioridades;
- Redução drástica da mortalidade no atendimento ao politraumatizado.
Dúvidas Frequentes (Guia Rápido)
O que é uma vítima de trauma?
Vítima de trauma (ou traumatismo) é qualquer paciente que tenha sofrido ferimento(s) provocado(s) por causas externas, sejam eles de natureza física ou química.
O que significa cada letra do ABCDE do trauma?
- A: Airway (vias aéreas)
- B: Breathing (respiração)
- C: Circulation (circulação)
- D: Disability (disfunção neurológica)
- E: Exposure (exposição)
Como devem ser realizadas a avaliação primária e secundária no trauma?
A avaliação primária (ABCDE) e secundária devem ser realizadas de forma sistematizada, com hierarquia de prioridades, rapidez e eficiência por uma equipe previamente treinada em atendimento ao paciente politraumatizado.
Conclusão
Desde o início de sua implementação até os dias atuais, diversos estudos comprovam a eficiência do ATLS – e, portanto, do protocolo ABCDE do trauma – na diminuição drástica da mortalidade no atendimento inicial ao paciente politraumatizado.
Trata-se, então, de um protocolo que o médico não deve ter em mente apenas para suas provas, mas também para a prática da medicina no dia a dia, trabalhando ou não com situações de urgência e emergência.
Mesmo que sua meta seja trabalhar longe desse ambiente – por exemplo, na Dermatologia ou na Oftalmologia – é muito provável que em início de carreira você dê plantões de porta, onde o ABCDE do trauma é sempre necessário.
Ademais, mesmo se especializando em uma área, você continua sendo médico – devendo saber, portanto, o básico no atendimento inicial de um paciente politraumatizado.
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