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Publicado em
22/7/22

Doença Hepática Crônica: etiologias, complicações e tratamento

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Doença Hepática Crônica: etiologias, complicações e tratamento

A doença hepática crônica (DHC) ocorre quando o fígado é exposto a diversas formas de lesão, que persistem por no mínimo 6 meses

Há múltiplas causas, sendo as principais as hepatites, a esteatose hepática e a hepatopatia alcoólica.

Existem etiologias que geram uma doença hepática crônica mais leve e lentificada, e existem as mais graves, que rapidamente progridem e culminam em cirrose, o último estágio da DHC antes da insuficiência hepática.

Para que não haja avanço para esses últimos estágios, é necessário identificar e tratar o quanto antes a etiologia, assim, obtendo regressão da fibrose hepática e não evoluindo para falência do órgão.

Fisiopatologia

O fígado é o 2º maior órgão do corpo (atrás apenas da pele) e exerce inúmeras funções, como síntese de proteínas, armazenamento energético e excreção de substâncias tóxicas, assim sendo essencial para a homeostase do organismo.

Além disso, possui a propriedade de se regenerar fácil e rapidamente após sofrer agressões químicas ou físicas.

Entretanto, se esse processo danoso continuar por muito tempo, as células ficam incapazes de se reestruturarem corretamente.

Quando isso acontece, há preenchimento das lesões com tecido fibrótico (cicatrizes), que, se ocupar boa parte do órgão, torna-o dismórfico (aspecto irregular, endurecido, com nódulos) e sem executar suas funções adequadamente, características da cirrose.

Aspecto do fígado na cirrose. Fonte: Patologia Robbins 9ª edição.
Aspecto do fígado na cirrose. Fonte: Patologia Robbins 9ª edição.

Principais Causas da doença hepática crônica

Hepatite C

Dentre todas as hepatites (virais, induzida por fármacos e autoimunes), a hepatite C recebe destaque pela grande probabilidade de causar uma doença hepática crônica, e evoluir para cirrose e câncer

O agente etiológico é o Hepacivirus (HCV), transmitido por via hematogênica.

A maioria dos indivíduos contraem através do uso de drogas ou por sexo desprotegido, mas em raros casos pode ocorrer por contaminação acidental com material biológico.

Ainda não há vacinas ou soros (imunoglobulina) que possam prevenir a hepatite C, então, ao ter contato com o vírus é necessário que o paciente faça acompanhamento clínico durante o período de incubação da doença (até 6 meses). 

Nesses casos, o tratamento deve ser realizado se houver sinais.

Geralmente é assintomática nas fases iniciais (que podem durar anos) e a progressão para carcinoma ou cirrose pode ser acelerada por fatores como obesidade, etilismo, diabetes ou outras doenças hepáticas prévias (esteatose).

Estágios da progressão natural da hepatite
Estágios da progressão natural da hepatite.

O diagnóstico é confirmado com a presença de anticorpos Anti-HCV no sangue e a partir disso o indivíduo deve realizar exames (biópsia ou elastografia/Fibroscan®) para realizar o estadiamento da hepatite mediante a classificação METAVIR.

AVALIAÇÃO HISTOLÓGICA ESTÁGIO
Ausência de Fibrose F0
Fibrose Portal sem septos F1
Fibrose Portal com poucos septos F2
Fibrose Portal com numerosos septos F3
Cirrose F4
Tabela da classificação METAVIR, avalia o grau histológico de fibrose no fígado. Fonte: Reprodução/EMR/Beatriz Lages Zolin

Para mais, o HCV possui 6 diferentes genótipos, que influenciam no quadro clínico, prognóstico e tratamento da doença, então é essencial que seja feita a pesquisa do seu genótipo após o diagnóstico. 

O genótipo mais comum é o tipo 1, e, também, o mais grave.

Atualmente o tratamento para a hepatite C avançou bastante, obtendo cura em mais de 95% dos casos, com poucos efeitos adversos para o paciente. As medicações são os antivirais de ação direta (DAA).

Os DAA são Daclatasvir, Sofosbuvir, esquema 3D (veruprevir + ritonavir + desabuvir) e Simeprevir e a combinação dessas drogas deve ser de acordo com o genótipo do HCV. 

O tempo usual da terapia é 12 semanas, mas caso o paciente esteja grave, com cirrose, ou já realizou o tratamento anteriormente, expandir para 24 semanas

Para o paciente cirrótico também recomenda-se associar ao esquema terapêutico a ribavirina

Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica (Esteatose Hepática)

A doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) é a doença hepática crônica mais comum no mundo, estando presente em 35% da população brasileira. 

Pode ser definida como o acúmulo de gordura no fígado e é uma condição completamente reversível. 

Ela está associada diretamente ao sobrepeso/obesidade, resistência insulínica (diabetes mellitus) e dislipidemias

Aspecto Macroscópico (amarelado, macio, oleoso) e Microscópico (acúmulo de triglicerídeos – “bolas brancas” – nos hepatócitos) do fígado com esteatose. Fonte: Robbins 9ª edição.
Aspecto Macroscópico (amarelado, macio, oleoso) e Microscópico (acúmulo de triglicerídeos – “bolas brancas” – nos hepatócitos) do fígado com esteatose. Fonte: Robbins 9ª edição.

O risco da DHGNA é a evolução para esteato-hepatite não alcoólica (NASH), que ocorre em 30% dos casos, assim, tendo a probabilidade de progredir para cirrose ou carcinoma hepatocelular

O diagnóstico desta doença hepática crônica é feito por acaso, pois a DHGNA é assintomática. Deve-se utilizar o NAFLD Fibrosis Score para definir o manejo do paciente.

A partir desse escore, se o paciente for de baixo risco, deve repetir o USG a cada 2 anos. 

F: representação do fígado na ultrassonografia. R: representação do córtex renal. Imagem à esquerda: USG de um fígado normal, com parênquima ecogênico ao córtex renal.Imagem à direita: USG de fígado com esteatose, aspecto hiperecogênico quando comparado ao córtex renal. Fonte: Scielo.
F: representação do fígado na ultrassonografia. R: representação do córtex renal. Imagem à esquerda: USG de um fígado normal, com parênquima ecogênico ao córtex renal.Imagem à direita: USG de fígado com esteatose, aspecto hiperecogênico quando comparado ao córtex renal. Fonte: Scielo.

Já aqueles com risco intermediário devem realizar elastografia, para visualizar o grau de comprometimento e fibrose hepática.

Em pacientes com alto risco para a doença, recomenda-se biópsia.

O tratamento desta doença hepática crônica consiste em orientar a mudança de estilo de vida (alimentação saudável e prática de exercícios físicos), além de controle da diabetes e hipertensão

Como grande parte desses indivíduos são obesos, vale também considerar uma cirurgia bariátrica.

Doença Hepática Alcoólica (DHA)

A ingestão excessiva e crônica de álcool é uma das principais doenças hepáticas crônicas e é responsável por 50% da mortalidade de todos os pacientes cirróticos

A grande quantidade de triglicerídeos das bebidas gera esteatose hepática em 90% dos etilistas crônicos. 

Uma readaptação enzimática “forçada” pelo consumo exagerado do álcool pode ocorrer, levando a inflamação hepática (hepatite), precedendo a cirrose.

O diagnóstico é definido quando há evidências laboratoriais ou de imagem de doença hepática e declaração de grande ingestão de álcool pelo paciente.

Nesses indivíduos é necessário realizar exames de função hepática, sorologias, elastografia e biópsia hepática. 

Em grandes etilistas é importante pesquisar também doenças cardíacas, neurológicas e pancreáticas.

O manejo desta doença hepática crônica constitui-se de abstinência do álcool e acompanhamento clínico, para prevenir complicações.

Cirrose

Definição

A cirrose hepática pode ser definida como uma intensa fibrose no fígado, a ponto de haver mudança na arquitetura lobular, redução funcional e alteração do fluxo sanguíneo no órgão. 

Hoje sabe-se que pode haver regressão em alguns casos de cirrose, quando o estímulo danoso é removido, assim, nem sempre evoluindo para insuficiência hepática. Isso acontece nos casos de hepatite C, hemocromatose e doença hepática alcoólica.

Existem pacientes cirróticos com função compensada, parcialmente compensada e descompensada. 

Estes últimos irão apresentar complicações (hipertensão portal, distúrbios de coagulação e encefalopatia) e, frequentemente, necessitam de transplante.

Quadro Clínico

Estima-se que 40% dos pacientes cirróticos não apresentam sintomas nos estágios iniciais

Além disso, geralmente os primeiros sinais costumam ser inespecíficos, como perda de peso, astenia e déficit de concentração.

Mesmo assim, é identificado em exames laboratoriais diminuição da função hepática (aumento de TGO, TGP, GGT), plaquetopenia, hipoalbuminemia e bilirrubinemia.

Alguns sinais menos inespecíficos da cirrose são: 

  • Icterícia
  • Dor em hipocôndrio direito
  • Ascite
  • Esplenomegalia
  • Hálito hepático
  • Eritema palmar
  • Ginecomastia  
  • Presença de circulação colateral visível no abdome
  • Aranhas vasculares (telangiectasias)
Aranhas vasculares em paciente cirrótico. Fonte: Medicina NET
Aranhas vasculares em paciente cirrótico. Fonte: Medicina NET

Diagnóstico

O diagnóstico é através de exame clínico e laboratorial. Exames de imagem como USG, tomografia e ressonância podem auxiliar, também. 

Após a confirmação diagnóstica, é necessário solicitar biópsia hepática, para definição do prognóstico da doença. 

Para melhor avaliar o prognóstico, existe a classificação de Child-Pugh, que determina a gravidade e chance de sobrevida do paciente cirrótico.


CRITÉRIOS
PONTOS
1 2 3
Encefalopatia Ausente Graus I ou II Graus III ou IV
Ascite Ausente Pouca Extrema
Albumina >3,5 g/dL 2,8 a 3,5 g/dL <2,8 g/dL
Bilirrubina total <2 mg/dL 2-3 mg/dL >3 mg/dL
Tempo de Protrombina <4 segundos 4-6 segundos >6 segundos
CLASSE PONTOS SOBREVIDA EM 1 ANO SOBREVIDA EM 2 ANOS
A 5-6 100% 85%
B 7-9 81% 57%
C 10-15 45% 35%
A - Compensado; B- Parcialmente Compensado; C- descompensado. Classificação de Child-Pugh e sobrevida em 1 e 2 anos. Fonte: Reprodução/EMR/Beatriz Lages Zolin

A escala MELD (Model for End-Stage Liver Disease) também é muito importante para definir a gravidade do paciente com doença hepática terminal e seu escore é utilizado para definir a posição dos pacientes na lista de transplante hepático.

Para o cálculo do score é preciso utilizar os valores de creatinina, bilirrubina e INR (tempo de protrombina) do paciente. Pode-se utilizar calculadoras digitais para isso.

  • MELD = 40 ou mais — risco de 100% de mortalidade em 3 meses.
  • MELD = 30 a 39 — risco de 83% de mortalidade em 3 meses.
  • MELD = 20 a 29 — risco de 76% de mortalidade em 3 meses.
  • MELD = 10 a 19 — risco de 27% de mortalidade em 3 meses.
  • MELD <10 — risco de 4% de mortalidade em 3 meses.

É fundamental que a etiologia da cirrose seja identificada para que haja tratamento da doença base e melhores chances de cura do paciente.

Tratamento

O manejo da cirrose é feito por meio do suporte do paciente e prevenção das complicações, além do tratamento da etiologia base.

Conclusão

As doenças hepáticas crônicas são patologias do fígado que perduram por mais de 6 meses e surgem principalmente a partir de sobrepeso, etilismo e viroses.

Com o tempo, o fígado não aguenta a quantidade de danos e não consegue se regenerar apropriadamente, formando fibrose (tecido cicatricial).

Se essa fibrose for intensa, faz com que haja diminuição da função hepática e alteração da arquitetura normal, caracterizando a cirrose.

Posteriormente pode evoluir para insuficiência hepática, levando a necessidade de transplante hepático.

Leia mais:

FONTES:

  • Manual de Medicina Harrison – 20ª edição
  • Patologia Robbins – 9ª edição
  • JÚNIOR, A. Et al. Influência do grau de insuficiência hepática e do índice de congestão portal na recidiva hemorrágica de cirróticos submetidos a cirurgia de Teixeira-Warren. Disponível aqui.