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Publicado em
28/12/23

Síndrome compartimental abdominal: etiologia, diagnóstico e tratamento

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Síndrome compartimental abdominal:  etiologia, diagnóstico e tratamento

A Síndrome Compartimental Abdominal (SCA) é uma condição grave abordada pela Medicina de Emergência e Cirurgia Geral. Ela se trata do aumento da pressão dentro do abdômen acima dos níveis fisiológicos, podendo causar repercussões em todos os outros sistemas. Vamos entender mais dos critérios, fisiopatologia e manejo dessa condição?

O que é a síndrome compartimental abdominal? 

A Síndrome Compartimental Abdominal (SCA) ocorre devido a um aumento grave na pressão intra-abdominal (PIA) que pode resultar em falência de múltiplos órgãos. Em adultos, é caracterizada por uma PIA sustentada acima de 20 mmHg, associada a disfunção ou falência de órgãos recém-desenvolvida. Já em crianças, a SCA é definida por uma PIA sustentada acima de 10 mmHg associada a disfunção orgânica nova ou piora de uma pré-existente.

Relembrando conceitos…
Pressão intra-abdominal (PIA) Estado pressórico estável dentro da cavidade abdominal.
Pressão de perfusão abdominal (PPA) Valor médio da pressão intra-abdominal.
Hipertensão intra-abdominal (HIA) Elevação patológica sustentada ou repetida de PIA ≥ 12mmHg.
Complacência abdominal Capacidade do abdômen de se expandir em resposta a alterações de PIA.
Definições importantes na compreensão da Síndrome Compartimental Abdominal. Fonte: EMR/Fernanda Vasconcelos

Dica de prova

A hipertensão intra-abdominal pode ser dividida em: 

CLASSIFICAÇÃO
GRAU I 12 - 15 mmHg
GRAU II 16 - 20 mmHg
GRAU III 21 - 25 mmHg
GRAU IV maior que 25 mmHg
Graus de Hipertensão Intra-abdominal. Fonte: EMR/Fernanda Vasconcelos.

Sendo assim, faça a correlação entre IAPs e você verá que a SCA vai começar a existir, majoritariamente,  do Grau 3 em diante.

Etiologia  

As causas de SCA podem ser divididas em primárias e secundárias. As Primárias são aquelas que surgem a partir de uma condição ou doença intra-abdominal, como no trauma, hemorragia intra-abdominal, rotura de aneurisma abdominal e obstrução intestinal. Já as secundárias não possuem origem de órgãos intra-abdominais, como na gestação, ascite, sepse intra-abdominal e na ressuscitação volêmica extensa. Podemos destrinchar ainda com relação ao mecanismo de ação:

  • Diminuição de complacência abdominal: cirurgia abdominal, adesão intra-abdominal, grandes traumas, grandes queimaduras, ventilação mecânica e obesidade.
  • Aumento da pressão intraluminal: paresia gastrointestinal, distensão estomacal, constipação, megacólon e volvo do sigmóide.
  • Aumento da pressão abdominal extraluminal: pancreatite grave, pneumoperitônio, hemoperitônio, ascite secundária a falência hepática, tumores, abcessos, diálise peritoneal e  insuflação inadequada em procedimentos laparoscópicos.
  • Extravasamento capilar: sepse, sobrecarga volêmica, coagulopatia, complicação pós-hemotransfusão, bacteremia, inflamação sistêmica e coagulopatias.

Fisiopatologia 

A pressão intra-abdominal elevada pode ter um impacto orgânico sistêmico. No contexto cardiovascular, comprime a veia cava inferior, reduzindo o retorno venoso e diminuindo o débito cardíaco. No sistema respiratório, limita a complacência do pulmão e diafragma, reduzindo o volume respiratório, aumentando a resistência vascular e comprometendo a troca gasosa, levando à hipoxemia e hipercapnia. 

Ademais, no sistema renal, reduz o fluxo sanguíneo, prejudicando a função glomerular e podendo causar lesão renal aguda, oligúria e anúria. No gastrintestinal, reduz o fluxo sanguíneo visceral, levando à hipóxia tecidual, aumentando a permeabilidade capilar e o risco de infecção. Além disso, eleva a pressão intracraniana, diminui o fluxo sanguíneo cerebral e pode causar complicações neurológicas.

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Manifestações clínicas da Síndrome Compartimental Abdominal 

As manifestações clínicas da Síndrome Compartimental Abdominal  vão ser exatamente os sinais provenientes das complicações sistêmicas mencionadas anteriormente: abdômen tenso ou distendido ao toque, dispnéia, náuseas, vômitos, diminuição do débito cardíaco, taquicardia e PA sistêmica elevada. Além de oligúria, presença de acidose láctica à gasometria, sinais de sepse ou choque séptico, comprometimento do estado mental, entre outros.

Como realizar o diagnóstico? 

Na prática clínica, é  importante considerar a hipertensão intra-abdominal e a Síndrome Compartimental Abdominal como uma possibilidade para qualquer paciente grave ou na UTI, especialmente se apresentarem fatores de risco para tais problemas e/ou mostrarem sinais de disfunção de órgãos. Por isso, havendo suspeita, é recomendado sempre medir a pressão intra-abdominal (PIA). 

A Sociedade Mundial da Síndrome do Compartimento Abdominal recomenda a medição da PIA basal para todos os pacientes admitidos na UTI se tiverem ≥ 2 fatores de risco. A medição de PIA transvesical é considerada padrão de referência para monitoramento intermitente. 

Os valores de referência são: PIA ≥ 12 mmHg sustentada ou repetida para HIA ou sustentada >20 mmHg para SCA associada a nova disfunção ou falência de órgãos. Em crianças, a SCA é definida como PIA sustentada > 10 mmHg atrelada a nova disfunção de órgão ou piora de uma já existente. Lembrando que o valor de PIA fisiológico é entre 5 - 7 mmHg.

Configuração de medição para monitoramento da pressão intra-abdominal (PIA). (a) Visão esquemática do método modificado de Kron para medições da PIA. (b) Protótipo proposto de manga sensora deslizante para medições contínuas da PIA. Fonte: ResearchGate
Configuração de medição para monitoramento da pressão intra-abdominal (PIA). (a) Visão esquemática do método modificado de Kron para medições da PIA. (b) Protótipo proposto de manga sensora deslizante para medições contínuas da PIA. Fonte: ResearchGate

Qual o tratamento para a Síndrome Compartimental Abdominal? 

A escolha da abordagem da SCA depende da causa subjacente causadora do aumento da PIA, do tempo que essa pressão se mantém elevada e do impacto na função dos órgãos. Nem todo paciente com síndrome do compartimento abdominal (SCA) requer imediatamente uma descompressão cirúrgica, já que há abordagens não cirúrgicas que conseguem estabilizar o quadro. 


Quando necessário, o volume intra-abdominal pode ser diminuído por meio de técnicas de descompressão nasogástrica, retal ou endoscópica. O uso de drenagem percutânea pode reduzir o volume extraluminal em casos de ascite ou hematomas. Estratégias alternativas incluem melhorar a flexibilidade da parede abdominal com sedação, bloqueio neuromuscular, remoção de curativos restritivos e tratamento de escaras, entre outros cuidados. 

Exemplo de escarotomia em tórax e abdômen anterior. Fonte: PR39: Escharotomy
Exemplo de escarotomia em tórax e abdômen anterior. Fonte: PR39: Escharotomy

A drenagem por cateter percutâneo pode ser uma opção para casos de SCA relacionados a um aumento de volume fora de alças intestinais, sendo uma abordagem menos invasiva em comparação à laparotomia cirúrgica e pode ser utilizada temporariamente caso a descompressão cirúrgica não seja imediata. 

Possíveis complicações da descompressão cirúrgica são: o risco de formação de fístulas, perda de proteínas através do dreno de líquido peritoneal, desenvolvimento de hérnia na parede abdominal e infecção da ferida. Não há consenso sobre o momento ideal para realizar a descompressão cirúrgica, mas geralmente é considerada quando outras estratégias conservadoras não resultam na melhora do quadro do paciente.

Conclusão

A Síndrome Compartimental Abdominal (SCA) resulta do aumento excessivo da pressão dentro da cavidade abdominal, impactando diversos sistemas do corpo. Sua avaliação exige medições precisas da pressão intra-abdominal (PIA) e consideração dos fatores de risco e sintomas clínicos. O tratamento envolve estratégias conservadoras, como descompressão nasogástrica, retal ou endoscópica, preferíveis à descompressão cirúrgica, reservada para casos de falha terapêutica ou casos mais exuberantes.

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