O trauma abdominal é uma das condições mais desafiadoras enfrentadas por equipes de emergência e cirurgiões, dada a sua complexidade anatômica, a variedade de mecanismos de lesão e a necessidade de intervenções rápidas e precisas para evitar desfechos catastróficos. A 10ª edição do Advanced Trauma Life Support (ATLS) reforça a importância de uma abordagem sistemática e hierarquizada, baseada no protocolo ABCDE, para garantir a identificação precoce de lesões graves e a estabilização hemodinâmica do paciente.
Este texto explora detalhadamente todos os aspectos do trauma abdominal, desde sua definição e causas até o manejo clínico, com ênfase nas diretrizes atualizadas do ATLS, mantendo uma estrutura de texto corrido com topicalização para facilitar a compreensão.
Entenda o que é trauma abdominal
O trauma abdominal é definido como qualquer lesão que afete as estruturas localizadas na cavidade abdominal, incluindo órgãos sólidos (fígado, baço, pâncreas, rins) e órgãos ocos (estômago, intestinos, bexiga). Ele pode ser classificado em duas categorias principais: trauma contuso e trauma penetrante. Ambos os tipos de trauma podem levar a complicações graves, como hemorragia interna, peritonite (inflamação do peritônio devido a vazamento de conteúdo intestinal) e sepse, exigindo intervenção imediata.
O que é o trauma contuso?

O trauma contuso ocorre quando uma força externa é aplicada sobre o abdome sem causar perfuração da parede abdominal, sendo comum em acidentes de trânsito, quedas de altura e agressões físicas. A energia cinética do impacto pode causar compressão, cisalhamento ou ruptura dos órgãos internos.

O que é o trauma penetrante?
Já o trauma penetrante caracteriza-se pela violação da parede abdominal por objetos cortantes (facas, vidros) ou projéteis de arma de fogo, frequentemente associado a situações de violência urbana e resultando em lesões diretas a órgãos e vasos sanguíneos.

Principais causas do trauma abdominal: de acidentes a violência
As causas do trauma abdominal são diversas e refletem os contextos sociais, econômicos e culturais de diferentes populações. Acidentes de trânsito são uma das principais causas de trauma contuso, especialmente em colisões frontais ou laterais, onde a força do impacto pode comprimir ou romper órgãos abdominais.
Quedas de altura também são comuns, especialmente em idosos e crianças, cuja parede abdominal pode ser menos resistente. No contexto de trauma penetrante, ferimentos por armas brancas e armas de fogo são predominantes, frequentemente associados a situações de violência urbana.
Outras causas incluem agressões físicas, acidentes esportivos e lesões relacionadas a explosões. Em áreas urbanas, o trauma penetrante é frequentemente associado a violência interpessoal, enquanto em contextos rurais ou industriais, acidentes de trabalho e maquinários podem ser causas significativas. A violência doméstica também é uma causa importante, com espancamentos e chutes na região abdominal sendo comuns em casos de abuso físico.
Fisiopatologia do trauma abdominal: o que acontece no corpo?
A fisiopatologia do trauma abdominal varia conforme o mecanismo de lesão, mas envolve uma série de processos comuns que podem levar a complicações graves. No trauma contuso, a energia cinética do impacto é transferida para os órgãos internos, causando compressão, cisalhamento ou ruptura. Por exemplo, o baço, localizado no quadrante superior esquerdo, é altamente vascularizado e suscetível a rupturas.
A ruptura de órgãos sólidos ou vasos sanguíneos pode levar a sangramento intra-abdominal, resultando em hipovolemia e choque hemorrágico. Lesões retroperitoneais, como as do pâncreas e rins, podem causar hematomas retroperitoneais, que são mais difíceis de diagnosticar.
No trauma penetrante, o objeto penetrante causa lesões diretas aos órgãos e vasos sanguíneos. A trajetória do projétil ou objeto cortante determina quais estruturas são afetadas. Perfurações de órgãos ocos, como o intestino delgado, o cólon e o estômago, levam a vazamento de conteúdo gastrointestinal para a cavidade peritoneal, o que pode causar peritonite química e bacteriana. Lesões vasculares importantes, como as da aorta e da veia cava, podem resultar em hemorragia maciça.
Quais sinais clínicos exigem atenção imediata?
A identificação precoce de sinais clínicos sugestivos de trauma abdominal grave é uma etapa crítica no manejo do paciente traumatizado. Esses sinais podem indicar lesões potencialmente fatais, como hemorragia interna, perfuração de órgãos ocos ou comprometimento vascular, que exigem intervenção imediata para evitar desfechos catastróficos. A seguir, detalhamos os principais sinais clínicos que exigem atenção imediata, sua fisiopatologia e implicações clínicas.
Sinais de irritação peritoneal
A dor abdominal intensa é um dos sinais mais comuns e importantes no trauma abdominal. Sua intensidade, localização e características podem fornecer pistas valiosas sobre a natureza e a gravidade da lesão. A dor pode ser causada por irritação peritoneal, devido à presença de sangue, bile ou conteúdo intestinal na cavidade abdominal, ou por distensão das cápsulas de órgãos sólidos, como fígado e baço, ou ainda por isquemia tecidual.
A localização da dor é um indicativo valioso: dor no quadrante superior direito pode sugerir lesão hepática ou da vesícula biliar, enquanto dor no quadrante superior esquerdo pode indicar lesão esplênica. Dor difusa, por sua vez, pode ser um sinal de peritonite generalizada, frequentemente associada à perfuração de órgãos ocos. Dor intensa e progressiva, especialmente se associada a outros sinais de irritação peritoneal, como rigidez e defesa abdominal, exige investigação urgente.
A distensão abdominal é um sinal clínico importante que pode indicar acúmulo de líquido, como sangue ou conteúdo intestinal, ou ar na cavidade peritoneal. No caso de hemorragia intra-abdominal, o acúmulo de sangue na cavidade peritoneal pode causar distensão rápida e progressiva.
Já a rigidez da parede abdominal é outro sinal clássico de irritação peritoneal, frequentemente associada a lesões graves, como perfuração de órgãos ocos ou hemorragia intra-abdominal. A peritonite causa contração involuntária dos músculos da parede abdominal como mecanismo de defesa. Rigidez abdominal generalizada, especialmente se associada a dor intensa e defesa abdominal, é um sinal de alerta para lesões graves que exigem intervenção cirúrgica.
Lesões retroperitoneais
Lesões retroperitoneais, como as do pâncreas, duodeno ou rins, podem ser mais difíceis de diagnosticar, mas alguns sinais clínicos podem indicar sua presença. Dor lombar ou nos flancos, hematúria (sangue na urina) em casos de lesão renal e equimoses são indicativos de hemorragia retroperitoneal.
Equimoses na parede abdominal são sinais visíveis que podem indicar hemorragia retroperitoneal ou lesões de órgãos sólidos. O sinal de Cullen, caracterizado por equimose periumbilical, está frequentemente associado a hemorragia retroperitoneal, como em lesões pancreáticas ou ruptura de aneurisma da aorta abdominal.

O sinal de Grey-Turner, que se manifesta como equimose nos flancos, também está associado a hemorragia retroperitoneal, como em lesões renais ou pancreáticas. A presença desses sinais exige investigação urgente com métodos de imagem, como TC com contraste, para identificar a fonte da hemorragia.

Evisceração
Em casos de trauma penetrante, a presença de feridas na parede abdominal ou evisceração de órgãos é um sinal óbvio de lesão grave. Feridas por arma branca ou arma de fogo podem causar lesões diretas a órgãos e vasos sanguíneos. A evisceração, que é a protrusão de órgãos através de uma ferida abdominal, indica violação da cavidade peritoneal e alto risco de contaminação e lesão visceral. Pacientes com trauma penetrante e evisceração exigem laparotomia exploradora imediata para reparação das lesões.

Sinais de choque hipovolêmico
Os sinais de choque hipovolêmico são uma complicação comum em pacientes com trauma abdominal grave, especialmente naqueles com hemorragia interna. Taquicardia é uma resposta inicial à perda de volume sanguíneo. Hipotensão indica que o corpo não está conseguindo compensar a perda sanguínea.
A má perfusão periférica é resultado da vasoconstrição para manter a perfusão de órgãos vitais, enquanto alterações do estado mental, como confusão, agitação ou letargia, podem ocorrer devido à hipoperfusão cerebral. Esses achados em um paciente com trauma abdominal sugerem hemorragia ativa e exigem reposição volêmica rápida e intervenção cirúrgica.
Veja também:
- Residência médica em Medicina de Emergência: rotina, mercado de trabalho e salário
- Subespecialidades Cirúrgicas: quais são e qual a remuneração
- Cirurgia do Aparelho Digestivo: residência médica, salário e mais
Perfuração de órgãos ocos
A perfuração de órgãos ocos, como intestinos e estômago, pode levar à liberação de ar ou conteúdo intestinal na cavidade peritoneal, resultando em distensão e sinais de peritonite. Distensão abdominal associada a hipotensão, taquicardia ou outros sinais de choque hemorrágico é uma emergência cirúrgica que exige intervenção imediata.
Passo a passo do atendimento ao paciente
O manejo do trauma abdominal é um processo complexo e dinâmico que exige uma abordagem sistemática, rápida e eficiente para garantir a estabilização do paciente e a identificação precoce de lesões potencialmente fatais. A 10ª edição do Advanced Trauma Life Support (ATLS) fornece um framework estruturado, baseado no protocolo ABCDE, que orienta o atendimento desde a avaliação inicial até o tratamento definitivo.
A avaliação inicial segue o protocolo ABCDE, que prioriza as ameaças imediatas à vida e garante que o paciente seja estabilizado antes de proceder a investigações mais detalhadas.
A (Airway - Vias Aéreas)
A primeira prioridade é garantir a permeabilidade das vias aéreas. Em pacientes com trauma abdominal, especialmente aqueles com alteração do nível de consciência devido a choque hemorrágico ou lesões associadas, a obstrução das vias aéreas pode ocorrer rapidamente.
A intubação endotraqueal deve ser considerada em pacientes com incapacidade de manter a via aérea por si próprios, como aqueles com Glasgow ≤ 8, trauma cranioencefálico associado ou risco de aspiração. A proteção da coluna cervical é essencial durante a manipulação das vias aéreas, especialmente em pacientes politraumatizados.
B (Breathing - Respiração)
A oxigenação adequada é fundamental para garantir a perfusão tecidual. A avaliação da respiração inclui a inspeção da expansão torácica, ausculta dos pulmões e verificação da saturação de oxigênio (SpO2). Em pacientes com trauma abdominal, a presença de hemotórax ou pneumotórax (especialmente em traumas penetrantes) pode comprometer a ventilação. A descompressão torácica com agulha ou a colocação de um dreno torácico pode ser necessária em casos de pneumotórax hipertensivo ou hemotórax maciço.
C (Circulation - Circulação)
A estabilização hemodinâmica é uma das etapas mais críticas no manejo do trauma abdominal. O controle de hemorragias externas deve ser realizado imediatamente, utilizando compressão direta ou torniquetes, se necessário.
A reposição volêmica é iniciada com cristalóides isotônicos (soro fisiológico ou Ringer lactato), mas em casos de choque hemorrágico, a transfusão de sangue deve ser priorizada. O uso de hemoderivados (concentrado de hemácias, plasma fresco congelado e plaquetas) em proporções balanceadas (1:1:1) é recomendado para pacientes com sangramento ativo. A monitorização da pressão arterial, frequência cardíaca e débito urinário é essencial para avaliar a resposta à reposição volêmica.
D (Disability - Estado Neurológico)
A avaliação neurológica rápida é realizada para identificar lesões cerebrais associadas ou alterações do nível de consciência secundárias ao choque. A escala de coma de Glasgow (GCS) é utilizada para quantificar o estado neurológico. Em pacientes com trauma abdominal, a hipotensão e a hipóxia podem causar alterações neurológicas, que devem ser corrigidas rapidamente.

E (Exposure - Exposição)
O paciente deve ser completamente despido para permitir uma inspeção completa do corpo, incluindo a região posterior. A exposição facilita a identificação de feridas, equimoses, deformidades ou outros sinais de trauma. No entanto, é essencial manter o paciente aquecido para evitar hipotermia, que pode agravar a coagulopatia e piorar o prognóstico.
Após a avaliação inicial, o paciente deve ser reavaliado continuamente para monitorar a resposta ao tratamento e identificar novas alterações clínicas. A reavaliação inclui a verificação repetida dos sinais vitais, o estado neurológico e a perfusão periférica. Em pacientes com trauma abdominal, a deterioração hemodinâmica pode ocorrer rapidamente, especialmente em casos de sangramento ativo ou lesões ocultas.

O exame físico abdominal é uma etapa crucial para identificar sinais de lesão intra-abdominal. A palpação deve ser realizada com cuidado para evitar piorar lesões existentes. Sinais como dor à palpação, rigidez da parede abdominal, distensão e equimoses são indicativos de lesões graves. A ausência dos sons intestinais pode revelar íleo paralítico, comum em casos de irritação peritoneal. O exame perineal e retal também deve ser realizado para identificar sangue ou lesões associadas.

A ultrassonografia FAST é uma ferramenta essencial na avaliação inicial do trauma abdominal. A FAST é realizada em quatro regiões: hipocôndrio direito, hipocôndrio esquerdo, região suprapúbica e espaço pericárdico. Um resultado positivo (presença de líquido livre) indica a necessidade de intervenção imediata, como laparotomia exploradora. A FAST é altamente específica para hemorragia intra-abdominal, mas sua sensibilidade pode ser limitada em casos de lesões retroperitoneais ou pequenos volumes de líquido.

Em pacientes hemodinamicamente estáveis, a tomografia computadorizada com contraste é o padrão-ouro para a avaliação detalhada do trauma abdominal. A TC permite a visualização de lesões de órgãos sólidos (fígado, baço, rins), vasculares (aorta, veia cava) e retroperitoneais (pâncreas, duodeno). Além disso, a TC pode identificar sangramentos ativos, hematomas e lesões de órgãos ocos. A administração de contraste intravenoso é essencial para realçar as estruturas vasculares e identificar extravasamento de contraste, que indica sangramento ativo.
A laparotomia exploradora é indicada em pacientes hemodinamicamente instáveis com sinais de hemorragia intra-abdominal ou perfuração de órgãos ocos. A cirurgia permite o controle direto da hemorragia, a reparação de lesões e a lavagem da cavidade peritoneal em casos de contaminação por conteúdo intestinal. A decisão de realizar uma laparotomia deve ser rápida, especialmente em pacientes que não respondem à reposição volêmica ou apresentam sinais de irritação peritoneal.
O tratamento específico depende do tipo e da gravidade da lesão abdominal. Em casos de lesões de órgãos sólidos (fígado, baço), o manejo pode variar desde observação e tratamento conservador (em lesões menores e estáveis) até cirurgia ou embolização angiográfica (em lesões graves com sangramento ativo).
Lesões de órgãos ocos (intestino, estômago) exigem reparação cirúrgica, com sutura ou ressecção do segmento lesado. Em casos de lesões vasculares, o reparo cirúrgico ou a embolização são as opções terapêuticas.
Após a intervenção cirúrgica, o paciente deve ser monitorado cuidadosamente para identificar complicações como infecções, sangramentos ou síndrome compartimental abdominal. A pressão intra-abdominal deve ser monitorada regularmente, e a descompressão cirúrgica pode ser necessária em casos de aumento da pressão intra-abdominal que comprometa a perfusão de órgãos. O suporte nutricional precoce e a prevenção de infecções são essenciais para a recuperação do paciente.
Aprenda com especialistas: faça o extensivo Eu Médico Residente
A prova de residência médica exige do candidato não apenas conhecimento teórico, mas também a capacidade de interpretar e resolver questões de forma estratégica. Para garantir a sua aprovação na residência médica, não basta apenas estudar – é preciso um método eficiente e direcionado.
No Eu Médico Residente, oferecemos exatamente isso! Extensivos que estão numa plataforma de métricas, integrada com inteligência artificial, monta simulados e revisões personalizadas para otimizar seu desempenho. Além disso, nosso MedTrack atua como um mentor virtual, criando um cronograma de estudos ajustado às suas necessidades. Contamos também com um banco de mais de 60 mil questões comentadas, E-books detalhados, resumos, mapas mentais e flashcards.
Leia Mais:
- Traumatismo raquimedular: causas, como identificar e tratamento
- Isquemia mesentérica: o que é, sintomas, diagnóstico e tratamento
- Abdome agudo inflamatório: causas, sintomas e como tratar
- O que é o protocolo ABCDE do trauma, qual sua origem e como empregá-lo
- Gangrena de Fournier: o que é, como diagnosticar e tratar
FONTES:
- Advanced Trauma Life Support (ATLS): Manual do Curso para Alunos. 10. ed. Chicago: American College of Surgeons, 2018.
- Medicina de emergência: abordagem prática. 18. ed. Santana de Parnaíba: Manole, 2024.