A febre reumática (FR) é uma doença inflamatória sistêmica, mediada por mecanismos autoimunes, que ocorrem como uma complicação tardia de uma infecção prévia pela bactéria Streptococcus pyogenes (estreptococo beta-hemolítico do grupo A).
Apesar de ser uma condição evitável, a FR continua a ser um problema de saúde pública em países em desenvolvimento, especialmente em populações com acesso limitado a cuidados médicos. Para médicos, compreender profundamente a fisiopatologia, o diagnóstico e o tratamento da FR é essencial, especialmente durante a residência médica, onde o contato com casos agudos e crônicos é frequente.
O que é febre reumática? Compreenda essa doença e aprimore seu conhecimento para a residência
A febre reumática é uma doença multissistêmica que afeta principalmente crianças e adolescentes entre 5 e 15 anos, embora possa ocorrer em adultos jovens. Ela é uma sequela não supurativa de uma faringoamigdalite estreptocócica não tratada ou tratada de forma inadequada. A FR é caracterizada por uma resposta imune anormal à infecção por S. pyogenes, que leva à produção de anticorpos que reagem de forma cruzada com antígenos presentes no coração, articulações, pele e sistema nervoso central.
A doença pode evoluir para cardite reumática, que é a manifestação mais grave e pode resultar em lesões valvares permanentes, como estenose mitral ou insuficiência aórtica. A FR é, portanto, uma das principais causas de doença cardíaca adquirida em jovens em todo o mundo.
Febre reumática: da infecção à inflamação sistêmica – como isso acontece?
A fisiopatologia da FR envolve uma complexa interação entre fatores bacterianos, resposta imune do hospedeiro e predisposição genética. Após uma infecção por S. pyogenes, certas cepas da bactéria desencadeiam uma resposta imune humoral e celular. Os anticorpos produzidos contra os antígenos estreptocócicos, como a proteína M, reagem de forma cruzada com antígenos humanos presentes no miocárdio, válvulas cardíacas, sinóvia e tecido subcutâneo. Esse fenômeno é conhecido como mimetismo molecular.
A inflamação resultante leva às manifestações clínicas da FR, com cardite, artrite, coreia, eritema marginado e nódulos subcutâneos. A cardite é particularmente preocupante, pois a inflamação valvar pode progredir para fibrose e deformidades valvares crônicas.
Quando suspeitar e como reconhecer os sintomas clínicos?
A suspeita de FR deve ser considerada em pacientes, especialmente crianças e adolescentes entre 5 e 15 anos, que apresentam um histórico recente (2 a 3 semanas antes) de faringoamigdalite estreptocócica não tratada ou tratada de forma inadequada.
A FR é uma doença multissistêmica, e seus sintomas variam de acordo com os sistemas afetados, podendo incluir manifestações articulares, cardíacas, neurológicas, cutâneas e sistêmicas. O reconhecimento precoce desses sintomas é crucial para o diagnóstico e tratamento adequados, evitando complicações a longo prazo, como a doença cardíaca reumática.
A artrite é a manifestação mais comum, presente em aproximadamente 75% dos casos. Ela se caracteriza por uma poliartrite migratória, que afeta principalmente grandes articulações, como joelhos, tornozelos, cotovelos e punhos.
A artrite é assimétrica e migratória, ou seja, a inflamação "pula" de uma articulação para outra, com cada articulação afetada por alguns dias antes de melhorar espontaneamente. A dor é intensa, acompanhada de edema, calor local e limitação funcional. A artrite da febre reumática responde rapidamente ao uso de AINEs, o que ajuda a diferenciá-la de outras causas de artrite.

A cardite é a manifestação mais grave da febre reumática, ocorrendo em cerca de 50% dos casos, e é a principal causa de morbimortalidade associada à doença. Ela pode se manifestar como miocardite, pericardite ou endocardite, sendo esta última a mais comum e a mais preocupante, pois pode levar a lesões valvares permanentes.
Os sinais clínicos incluem sopros cardíacos novos ou alterados (especialmente sopro de insuficiência mitral ou aórtica), taquicardia desproporcional à febre, atrito pericárdico e, em casos graves, insuficiência cardíaca. A cardite pode ser silenciosa em alguns pacientes, sendo detectada apenas por exames complementares, como ecocardiograma.
A Coreia de Sydenham, também conhecida como "dança de São Vito", é uma manifestação neurológica tardia da febre reumática, ocorrendo semanas a meses após a infecção estreptocócica. Ela é caracterizada por movimentos involuntários, rápidos, descoordenados e assimétricos, que pioram com o estresse e desaparecem durante o sono. Além dos movimentos coreicos, os pacientes podem apresentar fraqueza muscular, alterações emocionais (como labilidade emocional) e dificuldade para realizar tarefas motoras finas. A coreia é mais comum em meninas e pode ser a única manifestação da FR em alguns casos.

O eritema marginado é uma lesão cutânea rara, presente em menos de 10% dos casos, mas altamente sugestiva de febre reumática. Consiste em máculas ou pápulas eritematosas, não pruriginosas, com bordas bem definidas e centro claro, que se expandem de forma centrífuga. As lesões são transitórias e geralmente aparecem no tronco e nas porções proximais dos membros, poupando a face. O eritema marginado é mais comum em pacientes com cardite.

Os nódulos subcutâneos são outra manifestação rara, ocorrendo em cerca de 2-10% dos casos. São nódulos firmes, indolores, móveis e de tamanho variável (geralmente de 0,5 a 2 cm), localizados sobre proeminências ósseas ou tendões, como cotovelos, joelhos, tornozelos e região occipital. Eles estão frequentemente associados à cardite grave.

Além dessas manifestações clínicas, os pacientes podem apresentar sintomas inespecíficos, como febre baixa a moderada, fadiga, artralgia (dor articular sem sinais inflamatórios), anorexia e perda de peso. Esses sintomas podem preceder ou acompanhar as manifestações maiores, contribuindo para o quadro clínico geral.
Veja Mais:
Critérios de Jones na prática: como utilizar no diagnóstico da febre reumática?
Os Critérios de Jones são a ferramenta diagnóstica mais utilizada para a febre reumática. Eles foram revisados e atualizados ao longo dos anos para refletir o conhecimento atual sobre a doença. Para o diagnóstico de Febre Reumática, é necessário combinar manifestações clínicas com evidência de infecção estreptocócica prévia. Os critérios são divididos em manifestações maiores, manifestações menores e evidência de infecção por Streptococcus pyogenes.
Manifestações Maiores
Cardite
Inflamação do coração, que pode envolver o endocárdio, miocárdio e pericárdio. A cardite é confirmada por achados clínicos (sopros cardíacos novos ou alterados) e/ou por ecocardiograma.
Poliartrite
Inflamação de múltiplas articulações, caracterizada por dor, edema e limitação funcional. A artrite da FR é migratória e responde rapidamente a AINEs.
Coreia de Sydenham
Movimentos involuntários, descoordenados e rápidos, associados à fraqueza muscular e alterações emocionais.
Eritema Marginado
Lesões cutâneas eritematosas, não pruriginosas, com bordas bem definidas e centro claro.
Nódulos subcutâneos
Nódulos firmes, indolores, localizados sobre proeminências ósseas ou tendões.
Manifestações Menores
Febre
Geralmente baixa a moderada, mas pode estar ausente em alguns casos.
Artralgia
Dor articular sem sinais inflamatórios, que não preenche os critérios para artrite.
Elevação de Marcadores Inflamatórios
Velocidade de hemossedimentação (VHS) e proteína C reativa (PCR) elevados.
Intervalo PR Prolongado no ECG
Sinal de envolvimento cardíaco, mesmo na ausência de cardite clínica.
Evidência de Infecção Estreptocócica
Cultura de Orofaringe Positiva
Isolamento de S. pyogenes em cultura de secreção faríngea.
Teste Rápido para Antígeno Estreptocócico
Detecção de antígenos estreptocócicos na orofaringe.
Elevação de Anticorpos Anti Estreptocócicos
Aumento dos títulos de ASLO (antiestreptolisina O) ou anti-DNAse B, indicando infecção recente.
Para o diagnóstico de FR, é necessário:
- 2 manifestações maiores, ou
- 1 manifestação maior e 2 menores
- Além de evidência de infecção por S. pyogenes.
Em população de média/alta incidência (incidência > 2/100.000 escolares por ano ou prevalência de cardiopatia reumática crônica > 1 caso por 1.000 pessoas de qualquer idade) a poliartrite e monoartrite são aceitos como critérios maiores, além de aceitar menores níveis de VHS.
Domine o tratamento da febre reumática e destaque-se na residência médica
O tratamento é baseado em três pilares principais: erradicação da infecção estreptocócica, controle da inflamação e prevenção de recorrências. Cada um desses aspectos é crucial para reduzir o risco de complicações, especialmente a doença cardíaca reumática, que pode levar a sequelas valvares permanentes e impactar significativamente a qualidade de vida do paciente.
Erradicação da Infecção Estreptocócica
O primeiro passo no tratamento da FR é garantir a completa erradicação do Streptococcus pyogenes. A terapia antimicrobiana é essencial para interromper a cadeia de eventos que levam à inflamação sistêmica.
Penicilina Benzatina
É o tratamento de escolha, administrada por via intramuscular em dose única. Para adultos, a dose recomendada é de 1,2 milhão de UI, enquanto para crianças com menos de 27 kg, a dose é de 600.000 UI. A penicilina benzatina é preferida devido à sua eficácia comprovada e à facilidade de administração em dose única, o que garante a adesão ao tratamento.
Alternativas em Casos de Alergia à Penicilina
Para pacientes com alergia à penicilina, a Amoxicilina, Cefalexina, Azitromicina, Clindamicina são opções viáveis. No entanto, é importante monitorar a adesão ao tratamento oral, especialmente em crianças, para garantir a erradicação completa da bactéria.
Controle da Inflamação
A inflamação sistêmica é a principal responsável pelas manifestações clínicas da Febre Reumática, e seu controle é essencial para aliviar os sintomas e prevenir danos teciduais, especialmente no coração.
Para pacientes com artrite ou artralgia, os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), como o naproxeno ou o ácido acetilsalicílico, são altamente eficazes. Eles reduzem a dor, o edema e a inflamação articular, proporcionando alívio sintomático rápido.
Nos casos de cardite, especialmente quando há envolvimento valvar significativo ou insuficiência cardíaca, os corticosteroides (como a prednisona) são indicados para controlar a inflamação cardíaca. A dose e a duração do tratamento devem ser individualizadas, com base na gravidade da cardite. Em geral, a prednisona é iniciada em doses mais altas (1-2 mg/kg/dia) e depois reduzida gradualmente ao longo de 2 a 3 semanas, com monitoramento clínico e ecocardiográfico.
A Coreia de Sydenham é uma manifestação neurológica que pode ser particularmente debilitante. O tratamento é sintomático e inclui o uso de medicamentos como haloperidol, ácido valproico e carbamazepina para controlar os movimentos involuntários. Em alguns casos, a coreia pode persistir por meses, exigindo acompanhamento neurológico prolongado.
Prevenção de Recorrências (Profilaxia Secundária)
A profilaxia secundária é um dos aspectos mais importantes do tratamento da FR, pois previne novos episódios de infecção estreptocócica e, consequentemente, recorrências da doença. A penicilina benzatina é o agente de escolha para a profilaxia, administrada a cada 21 dias por via intramuscular (1,2 milhão de UI para adultos e 600.000 UI para crianças com menos de 27 kg).
A duração do tratamento profilático depende da gravidade da doença e da presença ou ausência de cardite. Em geral, recomenda-se a profilaxia por pelo menos 5 anos após o último episódio de Febre Reumática ou até os 21 anos de idade, o que for mais longo. Para pacientes com cardite e sequelas valvares, a profilaxia pode ser necessária por toda a vida, devido ao alto risco de recorrências e complicações cardíacas, dependendo do grau de complicação da cardite.
Cardite sem lesão residual ou IM leve, profilaxia até 25 anos ou até 10 anos após o último surto. Já a cardite com lesão residual (IM) moderada/grave, profilaxia até os 40 anos ou por toda vida (profissões de alta exposição). E nos pacientes submetidos à cirurgia valvar, profilaxia por toda a vida.
O acompanhamento regular é essencial para monitorar a evolução da doença, especialmente em pacientes com cardite. A avaliação cardiológica, incluindo ecocardiograma periódico, é crucial para detectar precocemente qualquer deterioração da função valvar ou complicações cardíacas
Conclusão
A febre reumática é uma doença complexa e multifacetada, cujo diagnóstico e tratamento exigem conhecimento clínico detalhado e abordagem multidisciplinar. Para médicos em formação, dominar os critérios diagnósticos, as manifestações clínicas e as estratégias terapêuticas é fundamental para garantir um manejo adequado e prevenir complicações a longo prazo, como a doença cardíaca reumática.
Além disso, a conscientização sobre a importância do tratamento precoce da faringoamigdalite estreptocócica e da profilaxia secundária é crucial para reduzir a incidência dessa doença em populações vulneráveis.
Aprenda com especialistas: faça o extensivo Eu Médico Residente
A febre reumática é um tema recorrente nas provas de residência médica, exigindo do candidato não apenas conhecimento teórico, mas também a capacidade de interpretar e resolver questões de forma estratégica. Para garantir a sua aprovação na residência médica, não basta apenas estudar – é preciso um método eficiente e direcionado.
No Eu Médico Residente, oferecemos exatamente isso! Nossa plataforma de métricas, integrada com inteligência artificial, monta simulados e revisões personalizadas para otimizar seu desempenho. Além disso, nosso MedTrack atua como um mentor virtual, criando um cronograma de estudos ajustado às suas necessidades. Contamos também com um banco de mais de 60 mil questões comentadas, E-books detalhados, resumos, mapas mentais e flashcards.
Leia Mais:
- Oligúria: o que é, etiologias e tratamentos
- Artrite reumatoide: causa, sintomas, diagnóstico e tratamento
- Endocardite infecciosa: focando na clínica e no diagnóstico
- Endocardite infecciosa: focando na etiologia, fisiopatologia, tratamento e profilaxia
- Insuficiência cardíaca aguda: Definição, Causas e Tratamento
FONTES:
- Manual do Residente de Clínica Médica . 3. ed. Santana de Parnaíba [SP]: Manole, 2023.
- Harrison's Principles of Internal Medicine. 21. ed. [S. l.: s. n.], 2022.