A icterícia neonatal é uma condição bastante comum entre os recém-nascidos (RN’s), acometendo cerca de 60% dos RN termo e 80% dos neonatos prematuros. Pode ser fisiológica ou patológica. A patológica, quando não tratada, pode levar a complicações graves para os bebês, sendo a encefalopatia bilirrubínica (EBA) um dos desfechos mais temidos pelo pediatra.
Por ser uma doença tão comum, dominar seu manejo torna-se imprescindível. Neste post iremos abordar o que é icterícia neonatal, como diagnosticar e como tratar!
O que é a icterícia neonatal?
A icterícia neonatal é o nome dado a condição em que a pele, esclera e mucosa de recém-nascidos se encontra amarelada, sendo uma manifestação clínica da hiperbilirrubinemia. A hiperbilirrubinemia ocorre quando existe concentração sérica de bilirrubina indireta (BI) > 1,5 mg/dL, ou quando existe concentração de bilirrubina direta (BD) > 1,5 mg/dL, devendo essa última representar mais de 10% da bilirrubina total (BT).
É considerada precoce quando ocorre nas primeiras 24h, sendo sempre patológica. Já a tardia, pode ser fisiológica ou patológica.
O que é bilirrubina?
A bilirrubina é um pigmento amarelo liberado através da destruição fisiológica de hemácias senescentes. Sendo o sistema fagocítico mononuclear - composto por monócitos e macrófagos - responsável pela degradação dessas células. Após a destruição das hemácias, há a liberação do heme radical. Posteriormente, sob a ação de uma enzima denominada heme-oxigenase, esse radical irá se decompor em um pigmento intermediário: a biliverdina.
Esse pigmento irá ser reduzido por outra enzima, nomeada biliverdina redutase, que irá transformar a biliverdina na bilirrubina não conjugada (BNC). A bilirrubina não-conjugada, também denominada bilirrubina indireta (BI), por ser lipossolúvel, precisa ser transportada pelo plasma sanguíneo através da albumina para ser conjugada em sua forma hidrossolúvel pelo fígado.
Assim, no fígado, a BI será conjugada com o ácido glicurônico e, portanto, será denominada bilirrubina conjugada ou direta (BD). Dessa forma, é possível excretá-la para o trato gastrointestinal (TGI) para ser liberada pelas fezes.
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Quais as causas de icterícia neonatal?
A icterícia neonatal tem diversas etiologias, entre elas, a destruição de células sanguíneas, doenças congênitas e hepáticas. E mais, pode surgir por causas infecciosas e pelo leite materno, como citado anteriormente.
Destruição aumentada das células do sangue
A presença de céfalo-hematoma, equimoses e outros sangramentos promovem a degradação de mais hemácias. Como consequência, há hiperbilirrubinemia indireta, que pode provocar icterícia prolongada. Quando ela surge nas primeiras 24 horas de vida do neonato, deve-se considerar a doença hemolítica como a principal etiologia.
Assim, as principais doenças que devem ser consideradas são a incompatibilidade materno-fetal Rh, ABO ou por outros antígenos. São indicativos de hemólise a presença de anemia e reticulose. Outra causa hemolítica, não imune porém hereditária, é a deficiência de G6PD.
DICA DE PROVA
A prova pode relatar uma hepatoesplenomegalia, icterícia nas primeiras 24h e palidez. Nesses casos, pensa-se mais nas doenças hemolíticas.
Icterícia fisiológica
A icterícia fisiológica corresponde à adaptação do neonato ao metabolismo da bilirrubina. Isso pode ocorrer porque o RN é mais propício a maior degradação das hemácias, que apresentam vida média de 70 a 90 dias (em adultos, a vida média é de 120 dias).
Consequentemente, há liberação de cerca de 2 a 3 vezes mais bilirrubina indireta para a corrente sanguínea. Dessa forma, há uma maior sobrecarga dos hepatócitos com a BI, e sua capacidade de captar e conjugar essa substância torna-se diminuída. Ocorre, então, um aumento da circulação êntero-hepática, contribuindo assim para o aumento fisiológico da concentração sérica da bilirrubina indireta.
A icterícia fisiológica comumente surge após 24 horas de vida do neonato. Entretanto, tem um padrão diferente em recém-nascidos a termo e pré-termo. A icterícia no RN a termo tem seu pico no 3º a 4º dia de vida, e o quadro é normalizado até o 7º dia de vida. Já a icterícia no RN pré-termo tem seu pico no 4º ao 7º dia de vida, tendendo a normalizar o quadro entre o 10º a 30º dia de vida.
O limite máximo para a icterícia ser considerada fisiológica é de 13 mg/dL. Quando ela surge antes das 24 horas após o nascimento, é preciso ficar atento para possíveis causas não fisiológicas.
Icterícia colestática
Quando a icterícia acomete o RN por mais de 14 dias, é preciso pensar em possível diagnóstico de colestase por atresia de vias biliares. Dessa forma, na investigação clínica é preciso avaliar presença de colúria e de acolia fecal, pois quando a bilirrubina é impedida de atravessar o trato gastrointestinal e o sistema urinário, a pigmentação das excretas pode tornar-se diminuída ou inexistente.
Icterícia do leite materno
Nessa condição, o bebê encontra-se bem, evoluindo com ganho de peso e crescimento adequado, bem como com eliminações fisiológicas normais. Entretanto, este desenvolve a icterícia na primeira semana de vida, que tende a persistir por mais algumas semanas.
Acredita-se que esse tipo ocorra devido a ácidos graxos e enzimas presentes no leite materno, e que provocam aumento da bilirrubina indireta na corrente sanguínea do neonato. Assim, o diagnóstico é de exclusão. E mais, apesar do leito materno possivelmente provocar essa icterícia, não está indicada a suspensão, mesmo após o diagnóstico.
A icterícia do aleitamento materno acomete principalmente RN pré-termo entre 35 e 36 semanas. Por serem prematuros, esses bebês apresentam dificuldades de sucção, ou mesmo incoordenação sucção-deglutição-respiração. Dessa forma, diferentemente da icterícia do leite materno, na icterícia do aleitamento há dificuldade para alimentar o RN. Consequentemente, ele apresenta perda de peso importante, aumento da circulação entero-hepática e diminuição da capacidade de conjugação hepática, devido à prematuridade.
Acredita-se que a icterícia do leite materno ocorra devido a atividade da enzima glicuronil transferida na circulação entero-hepática. Essa enzima promove a transformação da BI em BD novamente. Assim, faz-se necessária a reabsorção da BI para o fígado, a fim de realizar novamente a conjugação dessa substância. Aumentando, assim, a concentração sérica de bilirrubina indireta.
Doenças do fígado
São exemplos de doenças hepáticas que podem provocar a icterícia neonatal, a atresia de vias biliares, tumores de fígado e do trato biliar.
Doenças congênitas
Algumas doenças congênitas também podem provocar a icterícia neonatal. Entre elas, o hipotireoidismo congênito, a síndrome de Gilbert e a síndrome de Lucey-Driscoll.
Infecções
Algumas infecções congênitas podem cursar com hepatites primárias, entre elas a sífilis, citomegalovirose, a rubéola, entre outras. Além dessas, há também a possibilidade de hepatite tóxica por septicemia.
Outras
Coleções sanguíneas causadas por tocotraumatismo e Policitemia também são causas de icterícia neonatal.
Como fazer o diagnóstico de icterícia neonatal?
O diagnóstico da icterícia neonatal pode ser dado pela visualização amarelada da pele do RN. Entretanto, apenas é possível visualizar essa coloração quando a bilirrubina total (BT) > 5-7 mg/dL. Por isso, é importante realizar a dosagem sérica da BT para dar o diagnóstico. Sendo esse exame considerado o padrão-ouro para diagnosticar a hiperbilirrubinemia no RN.
Também é possível realizar a medida da bilirrubina transcutânea. Assim, pela rapidez e praticidade que esse exame confere, pode ser utilizado para triagem e acompanhamento da evolução da icterícia.
Zonas de Krammer
Entretanto, caso esses exames não estejam disponíveis, é possível estimar a concentração da bilirrubina sérica se utilizando das Zonas de Krammer. Através delas, é possível estimar o nível de bilirrubina sérica do neonato. Para compreender como elas funcionam, é preciso ter em mente que a progressão da bilirrubina é cefalocaudal.
Assim, quanto maior a concentração sérica desse pigmento, maior a progressão da coloração: iniciando-se na cabeça, e progredindo para os membros inferiores, como pode ser visto na imagem abaixo.
Desse modo, quando apenas a cabeça do RN estiver ictérica (zona 1 de Krammer), é possível estimar que sua bilirrubina sérica está em torno de 4 a 8 mg/100mL. Quando a região das mãos e dos pés estiver amarelada, é possível estimar que a concentração sérica de bilirrubina pode estar ultrapassando 15 mg/100mL.
Quando o RN estiver na zona 3 de Krammer, é possível que a icterícia deste esteja ultrapassando valores relacionados a icterícia fisiológica (> 12 mg/dL). Nesse caso, torna-se fundamental a coleta de sangue para obtenção dos valores exatos da bilirrubina sérica. Por ser lipossolúvel, o aumento BI é tóxico para o sistema nervoso central e a criança pode apresentar um quadro de encefalopatia bilirrubínica.
A investigação etiológica é feita através de exames laboratoriais, naqueles com icterícia nas primeiras 24h ou valores de BT maiores que 15 mg/dl. Solicita-se hemograma, tipagem sanguínea da mãe e do RN, coombs direto do sangue do cordão ou do RN, coombs indireto de mãe Rh negativo, testes de função hepática, sorologias para infecções congênitas, avaliação para sepse, dosagem da glicose-6-fosfato-desidrogenase e dosagem de hormônio tireoidiano.
Nomograma
Para estimar o risco que o neonato apresenta de desenvolver as formas graves da condição, como a EBA, é possível utilizar um nomograma, que é a relação entre a bilirrubina sérica total e a idade pós-natal do RN em horas. Entretanto, ele apenas é válido para RN ≥ 35 semanas e com peso ao nascer ≥ 2.000g.
Encefalopatia bilirrubínica
A encefalopatia bilirrubínica ocorre quando a bilirrubina indireta acumula-se nos gânglios da base. O quadro clínico desta condição pode ser dividido em fase aguda e crônica.
Fase aguda
Na fase aguda, o paciente apresenta-se letárgico, com sucção débil e hipotônico. Além disso, quando o quadro não é tratado, o paciente pode apresentar choro agudo e de alta intensidade, hipertermia e hipertonia. A hipertonia manifesta-se através do retroarqueamento do pescoço e tronco. Quando não tratado, o neonato evolui para apneia, coma, convulsões e morte. Ou ainda, pode progredir para a fase crônica.
Fase crônica
O neonato sobrevivente à fase aguda apresenta a forma crônica da encefalopatia bilirrubínica. Essa é caracterizada pelos achados de paralisia cerebral, atetose grave, neuropatia auditiva, paresia vertical do olhar e displasia dentária. Essa tétrade constitui o kernicterus.
Para mais, a ressonância magnética desses pacientes evidencia hipersinal bilateral e simétrico do globo pálido, como visto na imagem abaixo.
Quais os tratamentos possíveis para icterícia neonatal?
O tratamento padrão-ouro para a icterícia neonatal é a fototerapia. Pode ser preciso associá-la com a exsanguineotransfusão (EST) em casos mais graves, ou com cirurgias, como no caso de atresia das vias biliares.
A fototerapia consiste na utilização de luz, comumente azul ou verde, para a fotoisomerização da bilirrubina. Dessa forma, a bilirrubina não conjugada, presente nos capilares e espaços intersticiais superficiais, torna-se hidrossolúvel. Assim, a bilirrubina pode ser excretada pela urina e pela bile, sem precisar sofrer a conjugação no fígado. A duração desse tratamento dependerá de diversos fatores. Entre eles, a idade gestacional (IG) do RN e o mecanismo da icterícia - se fisiológico ou patológico.
Apesar de ser um tratamento muito seguro, pode haver algumas complicações. Entre essas, queimaduras e desidratação, bem como a interferência física e emocional na formação do vínculo criança-mãe.
Outras formas de tratamento
A principal indicação atual de exsanguineotransfusão é a doença hemolítica grave por incompatibilidade Rh. Pode ser indicada também em caso EBA aguda ou na presença de níveis séricos de hiperbilirrubinemia indireta sem resposta à fototerapia intensiva.
A EST tem como objetivos diminuir os níveis de bilirrubina sérica, reduzindo o risco de encefalopatia bilirrubínica. Bem como objetiva substituir hemácias sensibilizadas e reduzir os anticorpos circulantes. Ademais, em caso de colestase por atresia das vias biliares, pode ser indicada a cirurgia de Kasai, devendo ser feita preferencialmente antes dos 30 dias de vida do neonato.
Conclusão
A icterícia neonatal é uma condição extremamente comum no público pediátrico. É caracterizada por coloração de pele, esclera e mucosas amarelada devido aumento de bilirrubinas. Pode ser uma condição benigna, como pode gerar complicações graves. É importante o diagnóstico e diferenciar a gravidade, para que seja tratado de forma correta. O tratamento padrão-ouro é a fototerapia
Vamos ver uma questão NA PRÁTICA? Abaixo está o link de uma questão explicada sobre icterícia neonatal.
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FONTES:
- BHUTANI, Vinod K. WONG, Ronald J. Unconjugated hyperbilirubinemia in term and late preterm infants: Epidemiology and clinical manifestations. UpToDate. 2021.
- Tratado de pediatria: Sociedade Brasileira de Pediatria. 5ª ed. Barueri: Manole, 2022.