Paciente chega ao hospital onde você trabalha, em estado grave, apresentando uma hemorragia digestiva alta. Após a estabilização do quadro, você vai avaliar esse paciente. No exame físico e no exame de USG, você encontra os seguintes achados:
E aí, qual o diagnóstico? Aproveita esse post para entender de vez a fisiopatologia do S. mansoni (espécie mais comum de schistosoma no Brasil) e finalmente conseguir correlacionar com os achados nos exames físico e de imagem!
Transmissão
O hospedeiro intermediário da M. mansoni é o caramujo do gênero Biophalaria. É nele que vai ser encontrado o miracídio, a forma assexuada do caramujo. Os miracídios vão se maturar em cercárias, que vão ser a forma infectante do verme e movimentar-se livremente pela água para penetrar na pele de banhistas.
Ao penetrar na pele, as cercárias se transformam em esquistossômulos, que podem causar dermatites, pápulas e hiperemia no local de penetração (forma aguda da doença). Os esquistossômulos secretam enzimas proteolíticas que vão destruir a matriz conjuntiva e penetrar na circulação periférica. Após penetrar a circulação, o verme imaturo vai passar pelos pulmões e vai migrar para o fígado.
O verme adulto vai migrar para as veias mesentéricas inferiores (aproximadamente após um mês da infecção), e vai depositar seus ovos. Os ovos podem ter três destinos diferentes: podem ser liberados pelas fezes (e vão poder ser detectados pelo exame de fezes, que vai diagnosticar o paciente com Esquistossomose, caso dê positivo!); podem permanecer no intestino e causar uma infecção granulomatosa local; ou podem migrar para o fígado e se alojar nos vasos pré-sinusoidais, provocando granuloma e fibrose periportal (que vai justificar o achado hiperecogênico no ultrassom do paciente que analisamos lá em cima!). É fundamental compreender que, já que a infecção vai ser apenas pré-sinusoidal, ela não vai afetar as funções do parênquima hepático.
Características Clinicas
É fundamental ter sempre em mente que o paciente que vive em área endêmica pode passar vários anos com esquistossomose e não apresentar nenhum sintoma clínico. Já os pacientes que não vivem em áreas endêmicas (turistas, por exemplo) vão ter maior probabilidade de apresentar a forma aguda da esquistossomose: a febre de Katayama (febre aguda toxêmica). Nesse caso, a clínica desse paciente vai ser caracterizada pela dermatite, febre, fadiga, mialgia, tosse não produtiva, eosinofilia acentuada e leucocitose, diarreia e cefaleia. Além disso, na febre de Katayama, os ovos do S. mansoni vão provocar granulomas necrótico-exsudativos e, diferentemente da forma crônica, vão ser sincrônicos, ou seja, vão estar na mesma fase histológica.
Já no paciente que vive em área endêmica do S. mansoni, é considerado que, na placenta, a mãe passou anticorpos e citocinas que ajudariam a desviar a resposta imunológica ao parasita para o tipo Th2. Assim, as manifestações clínicas desse paciente vão ser bem menos evidentes. A forma crônica pode ser dividida em hepatointestinal (forma menos grave da doença), a forma hepática avançada e a forma hepatoesplênica (forma mais grave da doença).
Hepatointestinal
Na forma hepatointestinal, o paciente vai ter sintomas vagos, e vai ser diagnosticado pelo exame de fezes. Ele vai ter granulomas espalhados pelo fígado e intestino, que vão estar em diferentes fases histológicas (alguns podem estar calcificados, outros fibrosados...), englobando ovos do S. mansoni.
Hepática
Se o paciente elimina ovos pelas fezes e tem hepatomegalia, mas ainda não apresenta a esplenomegalia nem a hipertensão portal, ele tem a forma hepática avançada da doença. Acredita-se que, apesar da fibrose nas veias hepáticas, esses pacientes conseguiram se adaptar hemodinamicamente para não desenvolver a hipertensão portal.
Hepatoesplênica
Já a forma hepatoesplênica é a forma que exige uma atenção maior do médico, e é justamente o caso do paciente que analisamos juntos! Nessa fase, há uma maior obstrução por causa das extensas fibroses pré-sinusoidais, que vão cursar com aumento da resistência vascular e aumento da pressão na veia porta. O achado disso na USG com o Doppler é o fluxo hepatofugal, em que essa resistência vascular começa a ser tão intensa que provoca um fluxo retrógrado. A consequência disso vai ser o desenvolvimento de uma hipertensão portal.
Todo o sangue do corpo desemboca na veia porta e, se há uma resistência que dificulta a passagem pelo fígado, a pressão tende a aumentar, também, nos vasos que desembocam diretamente nela (por exemplo, a veia esplênica!). Assim, a congestão venosa, que antes era somente no fígado, passa a ocorrer também no baço e vai evoluir para uma esplenomegalia, agravando ainda mais o quadro de hipertensão portal do paciente.
A clínica do paciente com a forma hepatoesplênica fica mais evidente, porque agora a hipertensão portal está tão acentuada que vai provocar o aparecimento da circulação colateral (a famosa “cabeça de medusa”), hepatoesplenomegalia ao exame físico e, além disso, a consequência mais perigosa: as varizes de esôfago. As varizes são um achado que exigem muita atenção, porque são a principal causa de mortalidade no paciente com esquistossomose. Caso as varizes se rompam, podem causar uma hemorragia digestiva alta (a exemplo o paciente desse post) que, muitas vezes, vão levar ao choque hipovolêmico e insuficiência hepática.
FONTE:
- FILHO, G. B. Bogliolo Patologia. 9 ed. Minas Gerais: Guanabara Koogan, 2016.